09/02/2015 - 10H02 - POR CARLOS ORSI
A questão é que esses levantamentos, e a forma como são interpretados, têm vários problemas. O primeiro, mais óbvio, é que com cerca de 190 países no mundo, fica muito fácil fazer comparações capciosas: por exemplo, comparado com os Estados Unidos, o Brasil é um país de população civil desarmada e alto índice de violência; comparado à Inglaterra, somos um país de população civil armada e alto índice de violência.
Os dados, enfim, se prestam àquilo que os estudiosos do método científico chamam de “cherry-picking” – literalmente, “apanhar cerejas”: em vez de analisar toda a informação relevante, apanham-se apenas alguns poucos dados escolhidos, as tais ”cerejas”, selecionadas de antemão para reforçar a ideologia do autor.
Em 2013, o site do jornal britânico “The Guardian” publicou as bases de dados completas da ONU e do grupo suíço Small Arms Survey sobre criminalidade e armamento civil, com informações sobre mais de uma centena de países. Eu fiz uma breve análise desses números, na época, em meu blog pessoal, e a conclusão a que cheguei foi de que não há conclusão: o grau de armamento da sociedade parece muito pouco importante – quase irrelevante – em seu impacto sobre as taxas gerais de violência, pois há países armados violentos e pacíficos, e há países desarmados violentos e pacíficos. Os dados globais simplesmente não apontam para nenhuma ligação sólida entre as duas variáveis.
Aliás, mesmo se fosse verdade que os países mais armados são os mais seguros, faltariademonstrar uma relação de causa e efeito entre uma coisa e outra. Um artigo comumente citado pelos que defendem a ideia de que mais armas significam menos crimes – “Would Banning Firearms Reduce Murder and suicide?” (“Será que proibir Armas Reduziria os Assassinatos e Suicídios?”), assinado por dois criminologistas e publicado em 2007 no “Harvard Journal of Law & Public Policy” – argumenta não que mais armas tornam a sociedade mais segura, e sim que proibir as armas não é um modo eficaz de reduzir a criminalidade. Citando: “Nações que têm problemas de violência tendem a adotar um controle estrito de armas, mas esses não reduzem a violência, que é determinada por fatores básicos, socioculturais e econômicos”.
O artigo do “Harvard Journal” usa uma amostra de 13 países europeus, incluindo Rússia (poucas armas, alta criminalidade) e Noruega (muitas armas, pouca criminalidade). Seria difícil sustentar que a questão do armamento – e não diferenças culturais, de desenvolvimento econômico, de democracia – é o que realmente distingue o cenário russo do norueguês.
Mais recentemente, em 2013, um artigo no “American Journal of Medicine”, envolvendo 27 países, encontrou uma forte correlação entre o número de armas de fogo per capita e a taxa de mortes por armas de fogo, mas nenhuma correlação entre armas per capita e criminalidade em geral.
Finalmente, é bom lembrar que, mesmo se a disseminação da posse de armas entre a população tornasse um país, em linhas gerais, mais seguro – talvez por intimidar os criminosos profissionais –, isso não anularia a conclusão dos estudos que citei na semana passada: a de que, ao adquirir uma arma, o cidadão tem muito mais chance de se envolver numa tragédia do que de agir em legítima defesa.
Nesse cenário, ter uma arma configuraria um caso de sacrifício pessoal (elevar o risco para o indivíduo e sua família, por conta da presença da arma) em nome de um benefício social (redução geral da criminalidade, por um efeito de intimidação os bandidos). O que os dados mostram, porém, é que o benefício não existe, já que o que determina a criminalidade são fatores culturais, políticos e sociais, não o grau de armamento da população. Resta, portanto, apenas o sacrifício.http://revistagalileu.globo.com/blogs/olhar-cetico/noticia/2015/02/ciencia-por-tras-do-debate-sobre-o-desarmamento-civil-parte-ii.html
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